Manuel António Pina Poems

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1.
[CONSOLAÇÃO DE G. A PAULINA]

"Os que, ao fim da vida toda,
regressaram à sua fortaleza,
já não têm agora tempo
nem espaço para oferecer à morte;
nem morte para oferecer a si mesmos.
Séneca na estufa esvaindo-se em vagaroso sangue,
aspergido sobre os escravos
como uma dádiva de recta vida.
É possível ser rico e ser recto? É.
Mas pode a morte ser
testemunha da vida?

Porque é tão difícil, Paulina, morrer em tom menor,
sem tragédia e sem justificações,
sem procurar inutilmente a salvação
da vida
(já que os bens ficam ao cuidado do testamenteiro),
é tão impertinente deixar escrito,
ainda por cima tão bem escrito:
‘Queimem o meu cadáver sem qualquer cerimonial',
é tão decepcionante, tão desproporcionado!

Outros, menos desesperançados e menos amedrontados,
fitam com impacientes olhos os médicos
invejando-lhes a excelente saúde e a barba feita,
e por mais um dia de vida,
de penosa e vagarosa vida,
seriam capazes de trocar
cinquenta anos de riqueza e rectidão.
Esses parecem-me, a mim que
não sou um filósofo,
bem mais sólidos e irrefutáveis.

Ocorreu-me ontem que
não vejo o correio há uma semana,
e que nem por isso sou mais feliz ou mais infeliz;
a felicidade não depende certamente de coisas como o correio
ou como o temor ou o desejo,
depende talvez mais, pelo menos para já,
da certeza de que os papéis estão arrumados,
pagas as dívidas,
intacta ainda a possibilidade de morrer.
Um dia destes, se fosse caso disso,
escrever-te-ia sobre a discordante paixão da
imortalidade.
Agora é tarde, estão já
à porta os assassinos.
Teu Gallion."
...

2.
[G.'S CONSOLATION TO PAULINE]

"Those who, at the very end of life,
returned to their fortress,
now no longer have time
or space to offer death;
nor death to offer to themselves.
Seneca in his greenhouse, bleeding slowly away,
sprinkled himself upon his slaves
like a gift of righteous life.
Can one be wealthy and righteous, too? Yes.
But can death bear
witness to life?

For it is so difficult, Pauline, to die in a minor key,
without tragedy or explanations,
without searching uselessly to save
one's life
(since one's possessions remain in the hands of the executor),
so unnecessary to leave it written,
and even worse so well written:
‘Burn my corpse without any ceremony',
so disappointing, so disproportionate!

Others, less hopeless and more fearful,
watch the doctors with impatient eyes,
envying their splendid health and clean-shaved cheeks,
and for another day of life,
of slow and painful life,
would be ready to trade in
fifty years of wealth and righteousness.
Those seem to me, since I am
no philosopher,
much more solid, irrefutable.

It occurred to me yesterday
I hadn't seen the mail all week
and yet I'm neither happier nor unhappier for that;
happiness certainly doesn't depend on things like mail
or fear or desire,
it depends more, perhaps, at least for now,
on the certainty that one's papers are in order,
debts paid up,
the possibility of death still intact.
One of these days, if it makes sense,
I will write you about the discordant passion for
immortality.
It is late now, the killers
are already at my door.
Yours, Gallion."
...

3.
EXTREMA-UNÇÃO

Uma breve, amável mágoa à
flor dos olhos, um distante desapontamento,
morrias como se pedisses desculpa
por nos fazeres perder tempo.

Tinhas pressa mas não o mostravas,
receavas que não estivéssemos preparados,
e, suspenso sobre nós, esperavas
que disséssemos tudo, que fizéssemos o apropriado.

Morrer não é motivo de orgulho,
mas estavas cansado de mais para te justificares.
Ainda por cima no mês de Julho,
com as férias marcadas, ausentes os familiares.

Tínhamos levado as crianças de casa,
feito os telefonemas, escolhido os dizeres.
O quarto fora arrumado, a cama mudada
com roupa lavada. Só faltava morreres.
...

4.
EXTREME UNCTION

A brief and affable sorrow
surfacing in the eyes, a distant disappointment,
you died as if gently begging pardon
for making us lose time.

You were in a rush but didn't show it,
you feared that we were not prepared,
and, hovering above us, you waited
for us to say it all, and do what needed to be done.

Dying is no reason to be proud,
but you were too exhausted to explain yourself.
And worst of all, it was July,
vacations set, relatives already gone.

We had taken the children away,
made our phone calls, chosen our words.
The room was now in order, the bed remade
with freshly laundered sheets. Nothing missing, but your death.
...

5.
ATROPELAMENTO E FUGA

Era preciso mais do que silêncio,
era preciso pelo menos uma grande gritaria,
uma crise de nervos, um incêndio,
portas a bater, correrias.
Mas ficaste calada,
apetecia-te chorar mas primeiro tinhas que arranjar o cabelo,
perguntaste-me as horas, eram 3 da tarde,
já não me lembro de que dia, talvez de um dia
em que era eu quem morria,
um dia que começara mal, tinha deixado
as chaves na fechadura do lado de dentro da porta,
e agora ali estavas tu, morta (morta como se
estivesses morta!), olhando-me em silêncio estendida no asfalto,
e ninguém perguntava nada e ninguém falava alto!
...

6.
HIT AND RUN

More than silence was needed,
what was needed was at least a screaming fit,
a nervous breakdown, a fire,
doors slamming, a rushing about.
But you said nothing,
you wanted to cry, but first you had to straighten up your hair,
you asked me the time, it was 3 p.m.,
I don't remember now which day, maybe a day
when it was I who was dying,
a day that had begun badly, I had left
the keys in the lock on the inside of the door,
and now there you were, dead (dead and even
looking dead!), gazing up at me in silence stretched out on the road,
and no one asked a thing and no one spoke aloud.
...

7.
NUMA ESTAÇÃO DE METRO

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.
...

8.
IN A STATION OF THE METRO

My childhood passed and I was not there.
Thinking of something else, gazing in another direction.
The best years of my life lost to distraction.

Where is she now, Rosalinda, of the rosy thighs?
Belinda, Brunhilda, Kriemhilda, who could they be?
Teachers of German, most probably,
in some far-off middle school that lies

beyond our time and space. Long ago, today,
he would have loved them with a shameless fire,
as in a dirty dream of wild love and teen desire
from which someone awoke the other day.

For all was memory, stray traces
of what happened years ago, and he,
remembering, was also just a memory,
a face now fading among other faces.

Seen from here, from recollection now,
my life's a multitude, a murky chain
where I, (who could he be?), seek in vain
my face, a petal on a wet, black bough.
...

9.
AS VOZES

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

- Quem é?
- É a mãe morta
- São coisas passadas
- Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?
...

10.
VOICES

Childhood comes
step by step
climbs the stairs
knocks at the door

"Who's there?"
"Your dead mother"
"Things of the past"
"No one's there"

So many voices beyond our own.
And what if it is we out there
knocking on the door? Or we who went away?
And are alone?
...

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