SINAL Poem by Ruy Duarte de Carvalho

SINAL

Naquele ano a chuva foi excessiva e cresceram tortulhos
nos olhos dos cães. Os vitelos, ao espreitar a luz pelos sexos
das mães, afogavam-se em lama, no meio dos sambos. As paredes
das casas diluíam-se em nata e os oleiros desistiram de encomendar
a sua obra a Deus. Enormes cuidados foram inventados
para proteger o fogo nos altares e as crianças adoptaram a nudez.
As termiteiras deixaram de existir e as formigas aladas
perderam as asas. Os pés dos mais-velhos fenderam-se em chagas
e as mamas das virgens, mal eram tocadas, colavam-se aos dedos
como cinza húmida. Os lábios dos sexos das mulheres paridas
inchavam carnudos de uma carne branca e os ventres pendiam
como fruta mole.
Naquele ano a chuva foi excessiva
e os horizontes deixaram de existir.

Choveu por muito tempo até os cães perderem todo o pêlo
e as cabeleiras se destacarem como algas podres. O rei do Jau
ficou colado ao trono e ao boi sagrado cresceram-lhe os olhos,
que depois cegaram. As sementes grelaram nos celeiros
e essa semente assim era servida aos homens e daí lhes ocorreu
um tal vigor que os seus sexos cresceram desmedidos
e os homens vacilaram, tendo-os nas mãos e mudos de fascínio.

A chuva choveu tanto que as serpentes saíram dos buracos
e vieram alongar-se ao pé dos paus, mantendo com esforço
as cabeças erguidas. Nas terrinas do leite vicejavam musgos
e o leite das vacas alterou-se em soro, a coalhar na urina.
Naquele ano a chuva choveu tanto que até nos areais cresceram
talos e as enxurradas produziram peixe e até o ferro se lavou
sozinho e os diamantes vieram rebolar nas pedras concavadas
de moer farinha. As próprias aves morreram quase todas
e apenas se salvaram as de penas brancas, que a distância atraiu,
depois comeu.

E aquela chuva aproveitou aos fósseis e houve minerais
que se animaram e até pedras comuns a transmudar-se em carne.

Naquele ano a chuva choveu tanto que a memória perdeu todo
o sentido. As gargantas entupiram-se de limos
e as testas que os velhos pousavam nas mãos fundiam-se aos dedos
e os braços às pernas e os gestos de graça fundiam os corpos
e as jovens crianças ficavam coladas ao peito das mães.
Só as bocas teimavam em manter-se abertas e quando mais tarde
a chuva parou, das bocas saíram grossas aves negras
que abalaram logo daquelas paragens. E a seca voltou
e o mundo secou. A carne antiga a dar-se agora em terra,
os fósseis em pedra e as ramas em húmus.
E os passos poliram pouco a pouco as formas.

Naquele ano a chuva choveu tanto
que a memória nunca mais teve sentido.

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