BORRASCA Poem by Luís Miguel Nava

BORRASCA

Estalara-lhe de tal forma o eu que o próprio nome era uma ferida, através da qual a carne supurava. Das perdidas manhãs de sol da sua infância, de que lhe restavam agora escassos farrapos presos às raízes, libertava-se por vezes um clarão, desesperado apelo em direcção à realidade, rasgando-o dos olhos aos ouvidos.
Quem quer que lhe tivesse concebido os ossos, era então visível o objectivo de os fazer florir. Deles brotaria a pele, o céu, a encenação da glória. Tudo isso mais não eram, entretanto, do que imagens em apuros, imagens atacadas por memórias em conflito com o presente, ou mesmo com o passado onde pareciam radicar, e que, esbeiçando-se nos bordos, davam lugar a que o esquecimento sobre elas actuasse como uma espécie de ácido sulfúrico.
De cada vez que o invadia, a enxurrada da memória ascendia-lhe assim a um tal nível da consciência que os seus próprios ossos, deixando de ser pontos fixos e estáveis aos quais ele se pudesse segurar, vinham, desmantelados, boiar à superfície das águas borrascosas, de mistura
com entranhas donde só a alma parecia não se ter desalojado ainda, como que as inflando e
conservando à tona entre a gordura e o tumulto das lembranças.

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