Luiza Neto Jorge Poems

Hit Title Date Added
1.
A CABEÇA EM AMBULÂNCIA

Há feridas cíclicas há violentos voos
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã

ou que de noite se abrem
e pela manhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos

ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta

quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura, de infância.
...

2.
HEAD IN AN AMBULANCE

There are cyclical wounds furious flights
inside rounded air sacs
wounds that are thought of at night
and break out in the morning

or that open up at night
and in the morning are thought of
along with the other thoughts
our organs are adept
at inventing like bandages

compresses helmets
sacraments
for securing the head
when it breaks away from us

when it's able to sense us
in a syncope or naked exposure
or in a more spacious error
or in a quieter letter
or in the torture chamber
in the dark chamber, of childhood.
...

3.
MULHERES DE HENRY MOORE NOS JARDINS

O cheiro da chuva inquinou os jardins
mulheres de Henry Moore sorvem os ares.

E tu alvejas-me, filho, camuflado
na recôncava brandura desses seres.
"Morta! estás morta!" rejubilas.

Entre os mágicos projécteis à deriva,
já crisálidas, já arcas no dilúvio,
pedem paz elas num sossegado corpo
com a terra, seus regos, suas relvas.

Naves nossas de regresso ao solo?
...

4.
HENRY MOORE'S WOMEN IN THE GARDENS

The smell of rain has infected the gardens
Henry Moore's women inhale the air.

And you, son, take aim at me, camouflaged
in the cavernous whiteness of those beings.
"Dead!, you're dead!" you exult.

Among the magic projectiles adrift
- now chrysalises now arks in the flood -
they ask in their calm bodies for peace
with the earth, its furrows, its grass.

Are these our ships returning to the soil?
...

5.
AS CASAS

I

As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas


II

Prometeu ser virgem toda a vida
Desceu persianas sobre os olhos
alimentou-se de aranhas
humidades
raios de sol oblíquos

Quando lhe tocam quereria fugir
se abriam uma porta
escondia o sexo

Ruiu num espasmo de verão
molhada por um sol masculino


V

Louca como era a da esquina
recebia gente a qualquer hora

Caía em pedaços e
vejam lá convidava as rameiras
os ratos os ninhos de cegonha
apitos de comboio bêbados pianos
como todas as vozes de animais selvagens
...

6.
A MAGNÓLIA

A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.
...

7.
MAGNOLIA

Exaltation of the minimal
and the magnificent lightning
of the master event
restore to me my form
my splendor.

A tiny crib cradles me
where the word elides
into matter - into metaphor -
as needed, lightly, wherever
it echoes and slides.

Magnolia,
the sound that swells in it
when pronounced,
is an exalted fragrance
lost in the storm,

a magnificent minimal entity
shedding on me
its leaves of lightning.
...

8.
A DÍVIDA

Viva no instantâneo lábio do punhal
na hora diariamente imóvel

As dívidas crescem já são ásperas
magoam a pele já são pus

O dia começa pela sombra
como um povo começa pelo pó
Luz e morte coincidem hora a hora

A dívida alastra abre as asas
leva-me sonhos débeis tudo a tenta

Atrás do meu gesto
a mão sozinha os dedos conspirando
assimétricos
salientes do corpo até à morte

Já hoje os doava se pudesse
Com que arma porém os separar de mim?

A dívida mais cresce
enquanto eu penso
...

9.
THE DEBT

Alive in the dagger's instantaneous lip
in the daily arrested hour

The debts grow they're already rough
they hurt the skin they're already pus

The day starts out from shadows
as a people starts from dust
Hour after hour light and death coincide

The debt spreads it spreads its wings
it seizes my weak dreams everything tempts it

Behind the gesture I make
my hand is alone my fingers conspire
asymmetrically
sticking out from my body until death

I'd give them away today if I could
But what weapon can separate them from me?

While I'm thinking
the debt keeps growing
...

10.
A CASA DO MUNDO

Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.

Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.

Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.

Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.

Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.

É a casa do mundo:
desaparece em seguida.
...

Close
Error Success