Antero de Quental

Antero de Quental Poems

Há mil anos, e mais, que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo à chuva e ao vento:
Não há como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto. . .

Só o espírito vive: vela absorto
Num fixo, inexorável pensamento:
«Morto, enterrado em vida!» o meu tormento
É isto só. . . do resto não me importo. . .

Que vivi sei-o eu bem. . . mas foi um dia,
Um dia só - no outro, a Idolatria
Deu-me um altar e um culto. . . ai! adoraram-me,

Como se eu fosse alguém! como se a Vida
Pudesse ser alguém!- logo em seguida
Disseram que era um Deus. . . e amortalharam-me!
...

I've been dead for over a millennium,
Exposed, on this cliff, to wind and rain:
Not even a ghost has a thinner frame,
And no abortion is more misshapen. . .

Only my spirit lives, absorbed
By a single, inexorable thought:
"Dead and buried in life!" That
Is my torment. . . the rest I ignore.

I know I lived. . . but it was all of a day,
Just one - and the next day Idolatry
Built me an altar. . . Ah! they all bowed

As if I were someone! as if Life
Could be someone! - and then they decided
I was a God. . . and wrapped me in a shroud!
...

Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade. . .
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram. . .

Deixá-la ir a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram. . .

Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa. . .

Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo. . . e a última esperança. . .
E a vida. . . e o amor. . . deixá-la ir, a vida!
...

Let it go - the bird so cruelly
Despoiled of her young and nest. . .
May the infinite air of loneliness
Waft where her broken wings took her.

Let it go - the boat tossed about
On choppy waves amid the blackness
When night rose out of the vast expanses
And gales arrived from the South. . .

Let it go - the soul that laments
The faith and peace and trust it lost -
To that ever still and silent death...

Let it go - the lingering note
Of a final song. . . and the last hope left. . .
And life. . . and love. . . Let life go!
...

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: - "Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Por que é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante. . .

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Por que é que para a dor nos evocastes?"
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - "Homens! por que é que nos criastes?"
...

Lifting their arms to the heavens on high
And addressing the invisible gods,
The men cry out, "Immovable gods,
Who gains from invincible fate? Why

Did you create us?! Time unfurls
Relentlessly, and all it breeds
Is pain, illusion, strife, foul deeds,
In a cruel and delirious whirl. . .

Wouldn't it have been better for us
To remain in the peace of pre-matter,
In the eternal sleep of nothingness?

Why were we made, if pain is our greatest
End?" But the gods, with a voice yet sadder,
Say, "Why, O men, did you create us?"
...

Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

O mundo é grande - e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
mas a ara só lhe encontro. . . nua e velha. . .

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos. . .

Pura essência das lágrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, no céu ao menos!
...

What mortal beauty resembles yours,
O vision which my soul has dreamed
And which reflects in me your gleam
Like sunlight on the ocean's mirror?

So vast the universe! My yearning tells me
To seek you on Earth, so here I plod,
A believer searching for a clement God,
But I find just his altar. . . old and empty. . .

Your immortality inspires my worship.
But what are you here? A gaze of pity,
A drop of honey in a cup of lye. . .

Pure essence of the tears I weep
And dream of my dreams, if you exist,
At least reveal yourself in the sky!
...

I

Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, num sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento. . .

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; salmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha. . .
Almas irmãs da minha, almas cativas!


II

Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares. . .

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
Desse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares. . .

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão. . .
E acabará por fim vosso tormento
...

I

Voices of trees, the wind, the sea!
When, in certain sorrowful dreams,
I'm lulled by your powerful melodies,
I sense that you're distraught, like me.

Twilight words and secret breath
Of speechless things, mysterious psalm,
Wispy grieving, are you not
The world's sighing and lament?

A spirit inhabits the immensity:
A cruel yearning to be free
Makes the fleeting forms rave.

I understand your strange tongues,
Voices of seas, mountains, jungles. . .
My soul's sisters - souls enslaved!


II

Don't cry, seas and trees and winds,
Ancient chorus of strident voices
Chanting ageless, mournful verses
Like a dirge of mortuary worms. . .

One day you will finally leave
The shade of twilight visions, emerging
Radiant from that dream and those yearnings
Born of all that makes you grieve.

Souls still in the limbo of existence,
One day you'll awake, in Consciousness,
Hovering already as pure thought.

You'll see Forms, daughters of Illusion,
Crumble like a dream's confusions. . .
And never again will you be distraught.
...

Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza. . .
Mas, um dia, abalou-se-me a firmeza,
Deu-me rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento. . .
Só me falta saber se Deus existe!
...

Among the sons of an accursed century
I took my place at the irreverent table,
Where still was heard, under all the revel,
The moan of a helpless thirst for infinity.

Like the rest, I spat onto the altar
A laugh made of blasphemy and disdain.
But one day my hardness was fatally shaken;
An alarm went off in my repentant heart!

Opening the dam to its pent-up tears,
My lonely soul, sad and weary,
Turned to God, unable to resist!

I shrouded my thinking in Belief;
In forgetting and inertia I found relief. . .
My only doubt is if God exists!
...

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura. . .
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado. . .
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor. . .
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
...

I dream I'm a knight who ventures forth
Through deserts, hot days, and pitch-black nights.
A defender of love, with all my might
I seek the enchanted palace of Fortune!

But I'm already faint with weariness,
My sword is broken, my armor smashed. . .
And then I suddenly see it, flashing
With pomp and lofty magnificence!

I bang on the doors and cry in distress:
"I'm the Vagabond, the Dispossessed.
Have pity and open up, golden doors!"

The golden doors open with a din. . .
But sadly all I find within
Is silence and darkness - nothing more
...

O espectro familiar que anda comigo,
Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,
Que umas vezes encaro com desgosto
E outras muitas ansioso espreito e sigo,

É um espectro mudo, grave, antigo,
Que parece a conversas mal disposto. . .
Ante esse vulto, ascético e composto
mil vezes abro a boca. . . e nada digo.

Só uma vez ousei interrogá-lo:
«Quem és (lhe perguntei com grande abalo)
Fantasma a quem odeio e a quem amo?»

- «Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos,
Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos. . .
Mas eu por mim não sei como me chamo. . .»
...

The familiar ghost who accompanies me
(Without, however, showing his face)
And whom I sometimes view with distaste,
Though I usually regard him hopefully,

Is a solemn, sober, ancient ghost,
Who doesn't seem to like to converse. . .
Before this figure, ascetic and reserved,
My words have always stuck in my throat.

I dared to question him just once.
"Phantom whom I hate and love,
Who are you?" I asked with shame.

He said, "Your fellow human creatures
Have called me God for ten thousand years. . .
But I myself don't know my name. . ."
...

Só! - Ao ermita sozinho na montanha
Visita-o Deus e dá-lhe confiança:
No mar, o nauta, que o tufão balança,
Espera um sopro amigo que o céu tenha. . .

Só! - Mas quem se assentou em riba estranha,
Longe dos seus, lá tem inda a lembrança;
E Deus deixa-lhe ao menos a esperança
Ao que à noite soluça em erma penha. . .

Só! - Não o é quem na dor, quem nos cansaços,
Tem um laço que o prenda a este fadário,
Uma crença, um desejo. . . e inda um cuidado. . .

Mas cruzar, com desdém, inertes braços,
Mas passar, entre turbas, solitário,
Isto é ser só, é ser abandonado!
...

Alone! - On the hill the solitary hermit
Glimpses God, who grants him solace.
At sea the sailor whom the high winds toss
Waits for a friendly breeze from heaven. . .

Alone! - A man who has settled abroad,
Though far from his people, has fond remembrance;
And who weeps at night on a barren precipice
At least has the hope that's given by God.

Alone! - Not he who amidst his pains
Has a tie that binds him to his fate:
A faith, a desire. . . or a care, a concern. . .

But to cross one's listless arms in disdain,
To pass through a crowd forever separate
- That is to be alone: alone and forlorn!
...

The Best Poem Of Antero de Quental

PALAVRAS DUM CERTO MORTO

Há mil anos, e mais, que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo à chuva e ao vento:
Não há como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto. . .

Só o espírito vive: vela absorto
Num fixo, inexorável pensamento:
«Morto, enterrado em vida!» o meu tormento
É isto só. . . do resto não me importo. . .

Que vivi sei-o eu bem. . . mas foi um dia,
Um dia só - no outro, a Idolatria
Deu-me um altar e um culto. . . ai! adoraram-me,

Como se eu fosse alguém! como se a Vida
Pudesse ser alguém!- logo em seguida
Disseram que era um Deus. . . e amortalharam-me!

Antero de Quental Comments

Antero de Quental Popularity

Antero de Quental Popularity

Close
Error Success